foste um difícil começo



Um recomeço é sempre um abandono. Um abandono de amigos, de família, de lugares, de afetos, de conversas, de memórias. Todo novo começo implica a existência de um prévio, então é também o abandono de uma jornada, de uma história. Ainda assim, todo recomeço também é um novo começo, uma nova estrada que se abre pela frente, uma nova vida. Isso é muito delicado, porque existem coisas óbvias que se deixam para trás, coisas como espaços físicos, ou pessoas, itens pessoais, algumas não tão óbvias, como afetos que se deixam levar. No entanto, o delicado entra em jogo quando deixamos mais do que isso para trás, quando esquecemos parte de nós para trás e, pior ainda, quando completamos esse vazio com uma novidade.

 Recomeçar é também, e talvez principalmetnte, pode se reiventar. Ainda que nem todos se reinventem, sempre existe essa possibilidade em jogo. Me lembro de estar falando com um amigo que também ia recomeçar, e ele brincava sobre a possibilidade de mentir sobre quem era, de onde veio, do que gostava ou o que fazia, mentir para as pessoas: novos amigos, novas pessoas. Eu não levei a sério, para mim era óbvio que eu ia levar a sério, que eu não mentiria quem eu sou, até porque não haveriam motivos para isso.

 Recomecei em uma segunda, o primeiro dia de aula em uma nova cidade, em uma universidade. Eu não conhecia ninguém e ninguém me conhecia. Nos dias anteriores, em que eu estava viajando, eu comecei a ler o livro do Dale Carnegie, “Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas”, livros sempre me ajudaram, inclusive, paradoxalmente, me ajudaram a socializar. Eu lembro que li um livro no nono ano sobre interação social e, de uma certa forma, ele desbloqueou grande parte do bloqueio que eu tinha com os outros. Depois eu reli ele e não tive nenhum grande avanço, acho que, na época da primeira leitura, eu apenas descobri que eu tinha esse poder, o de me comunicar.

 O primeiro dia de aula passou batido, só falei com uma pessoa, o P. Comecei a achar que assim seria o resto da minha experiência universitária: dias em branco, aulas solitárias, tares estudando. Que recomeço, hein? Deixar o melhor grupo de amigos que já tive para isso, uma solidão completa. “Pelo menos são quatro anos, uma hora acaba e eu volto”, eu pensei, me iludindo com a possibilidade de “desrecomeçar”. 

 É engraçado, fazem três semanas disso, e hoje as minhas ânsias são completamente diferentes. Eu pensava que não faria amigos em quatro anos e, em duas semanas, já fiz mais do que jamais fiz. Achava que passaria tares solitárias estudando, e agora estou aqui, 22:25, no laboratória de informática, esperando meus amigos do noturno saírem da aula para voltar com eles. Pensei que teria calma, até demais, e acho que, em duas semans, nunca fui pra tantos lugares diferentes, conheci tantas pessoas e treinei tantos esportes. Achei que teria muita energia por não fazer nada, e estou tendo muita energia para fazer tudo.

 Nota-se que tudo mudou. Não só em uma semana, mas em uma vida. Eu nunca fiz amigos, sempre foram eles que me encontraram. Eu nunca fui uma pessoa conhecida, e agora eu sou. Eu nunca saía em festas e, em uma semana, fui em duas. Eu nunca tive a coragem de me trocar em um vestiário e essa semana eu já tomei banho em um duas vezes. Não foi um recomeço, está sendo, talvez daqui uma semana tudo mude - embora, para a minha felicidade, eu espero que não - quem sabe?

 E nessa roda-viva, eu só fico com um medo preso no fundo do meu coração. Será que eu estou mudando? Obviamente, sim, mas será que estou mudando a ponto de me tornar quem eu não era em trilhas passadas? Claro, é um recomeço, então, afinal de contas, algo haveria de ser restaurado, e, talvez, justamente seja essa criança tímida dentro de mim que descobre o poder de se comunicar de novo, que descobre o outro. E é lógico que, tamanha a mudança, maior será o poder de transformação. Queria ter uma resposta, um aforismo bonito para colocar aqui, mas creio que hoje vocês ficarão esperando. Apenas espero que seja um ótimo recomeço, e um péssimo abandono.


Comentários

  1. Vou te acompanha por aqui Bê. Que escrita mais linda. Já sou sua leitora.

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