Mãe
Ele era nordestino, trabalhava como táxi fazia muitos anos, mas também já trabalhou como entregador para emissoras de tv e jornais. Na verdade, não lembro se ele tinha uma família, embora seja provável que tivesse, ou o que mais ele disse naquela conversa. Infelizmente, não tenho a escuta atenciosa da minha mãe. Ela falou alguma coisa do porquê estávamos ali, de como eu ia cursar jornalismo. Como sempre, a resposta clássica: “vai ser o novo William Bonner”. Sinto um pouco de raiva, mas rio. Naquele carro tinham dois jornalistas, nenhum deles era o William Bonner. Meu pai não ria, na verdade ele estava odiando tudo aquilo, e eu sabia. Chegamos no aeroporto e a primeira coisa que ele fala é: “a sua mãe tem que parar com essa mania de conversar com os motoristas”. Eu pego as malas e ela se despede com um sorriso no rosto, meu pai reclama, mas, impassível, o sorriso permanece de pé.
Alguns meses depois eu e minha mãe fomos para Natal, eu e ela somente. Foi a primeira viagem que fizemos juntos, exclusivamente, sem o meu pai ou a minha irmã. Deve ter sido uma semana que ficamos lá, com mais responsabilidades do que tempo-livre, o que é bem contraintuitivo para um período de férias. Tínhamos que levar a minha avó para uma clínica, fazer uma série de exames com ela, exames que não podiam ser feitos no interior, onde ela mora. Depois, tivemos que organizar o aniversário da minha outro vó, em Natal mesmo. Por cima de tudo isso, uma série de complicações que renovaram aos poucos o nosso nível de estresse. Não foi, de forma alguma, uma viagem relaxante. Em comparação com outras viagens à Natal, passei longe de praias ou piscinas, e, quando cheguei a ir, ainda consegui ficar doente com um bicho geográfico. Toda hora tínhamos que sair de casa, ir a encontros sociais, passar na farmácia, no atacado, ir pra clínica, ou na casa de alguém, ou mesmo ir ao tarólogo. Tenho certeza de que se essa viagem tivesse sido com outra pessoa para outro lugar, ela teria sido bastante agradável. Fosse meu pai, por exemplo, provavelmente teríamos arranjado uma forma de dizer “não” para os compromissos e a única responsabilidade seria ir no mercado comprar comida para o café da manhã. Mesmo assim, não posso afirmar que teria sido uma viagem tão divertida.
Durante todo esse tempo ao lado da minha mãe, acho que nunca me diverti tanto, me lembrei de quando eu era criança. Ficar ocupado fazendo o que os outros mandavam, enquanto conversava com familiares que mal lembrava o nome mas que tinham me visto ainda bebê. Montar mesa para um aniversário, buscar comida no apartamento, acordar cedo pra (tentar) cumprir uma promessa. São coisas que normalmente eu protestaria, e que, quando eu tinha meus oito a doze anos, com certeza protestei, mas dessa vez fiz por livre-arbítrio. Por que? Porque fazia muito tempo, porque, no fundo, também sentia muita falta. Tudo foi um preparo para mim, um preparo para o que estou vivendo agora. Foi uma maneira de me lembrar quem eu também sou e posso ser. Venho de uma família que não fecha a boca, que se estressa para fazer uma festa que provavelmente não precisava ser feita, que cria tempestade em copo d'água só para ter alguma coisa a resolver, uma família bagunçada, complicada, mas que se ama. E, se a minha vida está sendo alguma coisa recentemente, ela com certeza está sendo bagunçada, complicada e dramática.
Não posso reclamar, é quem eu escolhi ser, é quem eu também sou. Aprecio muito o meu lado “intelectual”, contemplativo e artístico. Até porque, não fosse ele, não estaria aqui escrevendo esse texto. Ainda assim, durante todos esses anos parece que eu esqueci a outra parte de mim, a que gosta de falar, que gosta de ouvir, que gosta de fazer as coisas, colocar a mão na massa. Sempre entendi quando meu pai reclamava da minha mãe, como ela conversava com os motoristas, às vezes até eu me incomodava um pouco. Mas nunca me incomodei tanto, acho que em certa parte eu invejava. Invejava conseguir falar com uma pessoa tão diferente e ainda parecer entendê-la, invejava conseguir sobrepor todas as discordâncias simplesmente para um papo ocasional, invejava sentir essa fruição tão grande em conhecer o outro, tanto quanto sinto conhecendo a mim mesmo. Invejava a atitude dela de colocar isso em prática mesmo com os protestos do meu pai, e ainda sustentar um sorriso depois de todas as reclamações.
Recentemente, ela ligou pra mim, me falou como tinha sido o dia dela. Depois de toda a conversa que tivemos, eu perguntei: “porque você me ligou”. E ela, como se fosse óbvio, respondeu: “porque estava voltando pra casa, no carro, e sabe como é. Eu fiquei procurando alguém pra conversar”. Queria ter essa sua voracidade com o próximo, e por isso ainda sinto muito a sua falta, porque ainda tenho muito a aprender. Posso até ter menos vergonha agora, talvez até arrisque conversar com o motorista da próxima vez, mas ainda me falta algo que pra sempre irei invejar: o sorriso que você dá.
❤️❤️❤️
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ResponderExcluirDeve ser dureza ter um pai lacônico e uma mãe falante, rsrs. Mas lhe dá a chance de alcançar o.meio-termo
ResponderExcluirQue lindo, me emocionei
ResponderExcluirBernardo me emocionei muito ,mais ainda por vc ter o dom da sua mãe de escrever com leveza o cotidiano ,
ResponderExcluirCheguei em casa vindo da missa e do mercado. Seu pai disse, leu o Bernardo escreveu hoje. Respondi, não, e continuei guardando a feira. Não saia de casa sem ler. Ele ordenou. Íamos ao shopping almoçar. No minuto final, sentei e li. Tenho uma mania de não ler títulose não vi a palavra mãe. Só vi a nosso foto e comecei a ler. Confesso que demorou a cair a ficha que era um texto sobre mim, sobre nós. Fiquei mto orgulhosa e mto feliz. Lembro de um carnaval aqui em Brasília, vc devia ter uns dois anos, era bem pesadinho, e eu fui atrás do Galinho de Brasília com vc no braço, bem agarrado. Era uma forma de diminuir o peso, mas tb uma despedida: depois daquele ano já não conseguiria carregá-lo no colo. A nossa viagem para Natal teve o mesmo efeito: uma semana de grude, para uma despedida. E fiquei mto feliz do mto que ficou. Da cumplicidade, do companheirismo e do carinho com que vc tratou suas avós, tio, tias e primos naquele semana. Não se cobre a sorrir quando não tiver vontade, o sorriso deve vir do coração, mas sempre se disponha a escutar. É uma boa ferramenta para um repórter, mas tb pode ser uma benção para quem fala. Mtas vezes as pessoas só querem ser ouvidas. E eu vou reler de novo o que vc escreveu, para me emocionar e chorar de novo. Te amo! E amei o meu presente. Vou desfilar com a camiseta no Sesc-DF e nas caminhadas pela Asa Sul.
ResponderExcluirMais um lembrete: prepara-se para ligações minha depois das 18h, horário que saio do trabalho. São 15 minutos de caminhada, poderia escutar Bahiana System, Francisco, el hombre, Lamparina e ficar alegrinha, mas eu gosto mesmo é de conversar. E gosto do telefone. E vc é um excelente interlocutor. Então, 18:30, se puder, me atenda. Mas se não puder, tudo bem tb. Conversaremos em outro momento. Abraços!
ResponderExcluirMuito bom ler seus textos, Bernardo, leves e envolventes… feliz em ver você crescendo, noutra fase! Parabéns!
ResponderExcluirEncantada com a narrativa. De fato, tens a leveza da mãe na escrita.
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