Aqui, Ali, Em Qualquer Lugar


A experiência de mudar de cidade e deixar uma vida inteira para trás é destruidora. Mas, depois de ir e voltar da minha cidade natal, eu entendi que o segredo é carregar cada vez mais bagagem de lá pra cá. CDs antigos, caixas de som, bonecos, livros, canecas, canetas, cadernos. Lembranças, que transitam entre o meu passado e o meu presente dentro de uma mochila no bagageiro do avião.


 Faz seis meses que deixei Brasília — onde nasci e vivi a maior parte da minha vida. Passado seis meses e muitas idas e vindas de lá, a sensação de deixá-la mais uma vez continua sendo tão horrível quanto da primeira vez. Pelo menos, quando cruzei as fronteiras do Distrito Federal há um semestre, eu ainda mantinha uma certa ansiedade quanto ao futuro. Uma ansiedade boa e animadora, um desejo de saber e entender como seria o futuro, de quem eu seria, das pessoas que iria conhecer. Passei o caminho todo deslumbrado com tudo o que a minha aprovação na Universidade de São Paulo significava. Imaginava a cidade como eu a conhecia, as coisas boas: a diversidade, a liberdade, a metrópole. Não me lembrava do medo, como o senti em uma das minhas visitas à cidade, no ano anterior. De cruzá-la em direção ao centro, onde estava hospedado, e ver as enormes paredes de concreto se fecharem sobre mim. Não lembrei do barulho, do ar pesado, da pressa, dos apartamentos pequenos ou dos preços abusivos. Imaginava uma vida nova na maior cidade da América Latina e em tudo que eu poderia fazer com a minha liberdade. Talvez, justamente por isso, eu levasse tão poucas memórias de Brasília. 

Quando digo que “deixá-la mais uma vez continua sendo tão horrível quanto da primeira vez”, talvez esteja mentindo. Nas últimas viagens que fiz à Brasília, ao longo de todo esse ano, a sensação de ir embora era cada vez pior e a ansiedade de chegar o dia do meu retorno para lá era cada vez maior. E, do mesmo modo, cada vez que eu voltava levava menos coisas de São Paulo e cada vez mais de Brasília. Carregava a minha vida passada por meio de objetos, lembranças físicas. Talvez também seja por isso que tenho tirado mais fotos lá. Sempre gostei muito da fotografia, especialmente quando ela é amadora e completamente passional. Mas agora, toda vez que eu volto a Brasília, pego a câmera do meu pai — que geralmente está com a minha irmã — e fotografo meus amigos ou outros momentos que gostaria de guardar comigo, sejam as coisas mais bobas: como quando estamos cozinhando ou mesmo em um passeio casual ao shopping. Me reconforta pensar que talvez eu as imprima no futuro para fazer álbuns, ou talvez enquadrá-las. Me reconforta saber que poderei revisitá-las de repente apenas olhando para a minha mesa e revendo essas cenas do passado. Que sejam lembranças tão quentes e casuais quanto realmente foram em sua realidade.

Então, cada vez que volto para São Paulo, trago mais e mais da minha cidade e, consequentemente, de mim mesmo. Seja em bagagens que, com certeza, ultrapassam o limite permitido, ou por meio de google drives com 93% de ocupação em fotos. Da última vez minha mochila voltou cheia de CDs e fitas cassetes, além de uma boombox do meu pai em uma sacola. Quão necessário foi ter tanto estresse e trabalho para trazer tudo isso? Talvez não tenha sido tão necessário assim. Com certeza ilumina e ocupa o meu quarto, me dá mais para pensar e mais entretenimento em tardes vazias, embora, francamente, não possua mais muitas dessas. Talvez estivesse bem sem essas mil e uma coisas e provavelmente não sofreria tanto com a falta frequente de roupas no armário. Mas gosto de pensar que os objetos são como fantasmas, que guardam memórias suspensas no ar, embora fracas e invisíveis. Eu sabia que sentiria falta de ir no sebo com meu pai, na Musical Center ou na Marcondes — nossas lojas favoritas de artigos musicais usados. Assim como sinto saudades de acompanhá-lo ao cinema, de voltar tarde da noite para casa e passar em um McDonalds no caminho. De certa forma, ter carregado todos aqueles discos que eu havia comprado com ele para poder escutá-los depois é um esforço para relembrar todos esses momentos, todas essas memórias, que já não posso reviver.

 Voltando aos primeiros meses em São Paulo, eu sofria de uma grande crise identitária. Não entendia mais quem eu era ou quem eu deveria ser em um ambiente novo Foi um período confuso, que, admito, ainda não consigo entender muito bem. Foi difícil finalmente quebrar a ilusão de que encontraria os mesmos amigos de antes, as mesmas pessoas com quem passei os últimos anos da minha vida. Depois disso ainda havia o desafio de conviver ora em São Paulo e ora em Brasília. Personalidades que se construíram de formas tão diferentes: uma ao longo de anos e mais anos, outra em poucos meses, uma junto à minha família, outra de forma independente, além de todos os costumes e formas diferentes de usar o tempo. Por isso, ir e voltar de Brasília se tornou cada vez mais estranho. E trazer objetos da minha vida passada parecia a maneira certa de entender como eu era antes ou o que estava me tornando. Não sei se realmente ajudou. Ao menos, me trazia o conforto de lembrar que havia alguém antes de toda aquela bagunça, que tinha tomado conta da minha vida. E realmente havia. Mas apenas entendi isso recentemente:

Não foi a coisa mais responsável a se fazer, mas eu não me arrependo. Foi um leve martírio carregar dez quilos de bagagem de Guarulhos até Pinheiros. E é chato agora olhar para a gaveta no meu armário e identificar menos meias do que geralmente. Mas valeu a pena trocar algumas peças de roupa e gastar certo esforço para trazer objetos tão inúteis para cá. Porque é isso que eles são: livros que vou demorar meses para ler e cds que com certeza vou tocar apenas uma vez todo ano. Quando lembro que deixei em Brasília a minha camisa do Corinthians, enquanto trouxe para cá discos do Beatles e do Caetano, sinto que fiz uma troca necessária. Talvez não signifique muito para outras pessoas, talvez apenas seja um monte de plástico e tecnologias atrasadas, ou objetos com pouco valor. Mas, para mim, são fantasmas de mim mesmo, reflexos passados, como uma videochamada em que você vê a sua própria imagem com delay. Não me arrependo. Voltei com mais memórias do que nunca e realmente me sinto mais inteiro. Sinto como se fosse mais verdadeiro aqui em São Paulo. Também sinto que eu mudei em Brasília, como se parte de mim se tornasse uma novidade para meus amigos, um novo enigma da minha personalidade a descobrir, mesmo que eles me conheçam tão bem há tantos anos. Quando eu penso que, da próxima vez que eu for lá, vou levar algo que significa tanto para mim, que amo tão intensamente, me faz perceber que as inúmeras viagens e noites estressantes arrumando a mala significaram alguma coisa, mesmo que momentânea, ilusória e metafórica. 

Olhando para mim mesmo pela distorção holográfica de um dos CDs que trouxe, percebo que pouco mudou. Apenas se passaram seis meses. Curiosamente, me sinto menos diferente agora do que me sentia no início do ano — quando fui largado aqui para viver sozinho e por minha própria conta — embora mais tempo tenha se passado. Desde esse início de ano eu tento buscar quem era, mesmo sabendo que o resultado apenas viria com o tempo. E realmente está. É difícil admitir, mas nunca serei o mesmo, ainda que, de alguma maneira, consiga carregar todos os meus pertences para São Paulo. Nessa jornada (muito possivelmente eterna) vou continuar deixando roupas e “esquecendo” coisas daqui em Brasília, e trazendo livros e outros objetos inúteis para cá. Vou continuar indo e voltando carregando mais do que o necessário em uma mochila menor do que o suficiente. E vou continuar fazendo isso, assim sempre serei forçado a deixar um poquinho de mim lá para trazer um tantinho de mim para cá. Vou continuar até que os meus quartos aqui e ali se tornem indistinguíveis, até que eu esqueça em que cidade estão meus livros, meus cadernos, meus quadros, meus textos, as minhas memórias. Até que eu me sinta a mesma pessoa aqui, ali e em qualquer lugar.

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas