O Passado Sorri

 


“Estudando para a minha prova de teoria da comunicação, passei por alguns trechos da obra de McLuhan. Comunicador e pesquisador canadense, ele morreu em 1980, mas previu as transformações que o mundo passou até, pelo menos, o início dos anos 2000. ‘Olhamos para o presente por um espelho retrovisor. Marchamos para trás em direção ao futuro.’ Escreveu ele em uma de suas obras. O passado é certo, o passado já aconteceu, e muitas vezes vemos isso como um fato. O passado é uma realidade que existiu e, ao mesmo tempo, existe como a única verdade que a nossa percepção pode ter. O passado nem sempre é bom, mas as únicas coisas boas na vida já aconteceram, assim como as coisas ruins. O passado, embora seja uma certeza, também é uma memória. E toda memória é passível de ser apagada. As memórias boas ficam, as ruins somem, e, na correria do dia a dia, buscamos somente recriar as memórias boas. Corremos contra o relógio e acordamos no frio, passamos horas no trabalho, horas estudando e mais horas transitando entre um lugar e outro, tudo isso para reviver o que já vivemos.

Muitas vezes tive a consciência de que estava construindo boas memórias. Muitas vezes sabia que aqueles momentos ficariam marcados no meu passado. Aproveitava esses momentos ao máximo, sabendo que eles não se repetiriam no futuro, enquanto me afogava em mares de trabalhos, preocupações, medos e ansiedades. Lembro da última vez que me juntei com os meus amigos em Brasília, antes de vir pra São Paulo. Lembro de como me sentia bem com a minha aparência, de como ri, de como fingi surpresa quando eu cheguei lá, esperando encontrar somente minha amiga, e vi todos eles. Lembro de cortar o cabelo do meu amigo, que havia passado na Unicamp. Me lembro do aniversário dessa mesma amiga, na mesma casa. Como eu dancei — ou, pelo menos, tentei — dançar forró, lembro de ter comido açaí, foccacia, de ter cantado Caetano e Chico. Me lembro dos dias repetidos na escola, todo dia a mesma coisa, nenhuma surpresa e, mesmo assim, a mesma alegria. Me lembro do ano passado inteiro com uma nostalgia incrível.

Acordar, ir pra escola, almoçar, estudar, ler alguma coisa antes de dormir. Todo dia a mesma coisa. Pro final do ano eu comecei a acordar cada vez mais tarde, ir cada vez menos na escola, continuei estudando sozinho, lendo antes de dormir, gastando os meus dias. Com tudo o que aconteceu na minha vida esse semestre, acho incrível que eu sinta saudades de uma época tão vazia, tão parada. Mas é verdade. Parte de mim quer voltar a acordar às seis horas, pegar a minha bicicleta pra ir pra escola, fazer simulados e estudar geografia, história, ir dormir às dez achando que já estava tarde.

Hoje em dia eu ainda acordo às seis, mas vou dormir às três da manhã estudando para uma prova em cima da hora, ou fazendo um trabalho que esqueci de entregar. Ou chego tarde em casa e passo a minha noite mexendo em qualquer coisa no celular, esperando uma novidade, uma atualização, ou apenas mascarando a ansiedade e o medo que tenho de viver nessa cidade. Olhando dessa maneira, parece óbvio porque sinto saudades de Brasília, porque eu olho para aquele momento monótono da minha vida com tanto desejo. E, realmente, é tão óbvio assim. Eu queria a mesma estabilidade, queria poder parar de me preocupar com as coisas e me deparar com uma outra realidade. Uma realidade sem mistérios, sem medos ou ansiedades para cobrir. Uma realidade sem desejos ou paixões para ir atrás, sem situações complicadíssimas ou nós embaraçados para desatar. É óbvio que sinto saudades, e não acho que vou parar de sentí-las. O passado sorri, e temos medo de enfrentar o futuro. Andamos de costa porque sempre nos restará as boas memórias e a inocência do que já aconteceu. Não suportamos a ideia de ter que tecer a nossa própria vida, não aguentamos o medo de não sermos bom o suficientes para aguentar a visão do que está chegando. Preferimos cambalear para trás, certos de que o chão abaixo de nós existe. Até, eventualmente, tropeçarmos.”


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Isso é parte de um texto que eu comecei a escrever mês passado, provavelmente pouco antes das aulas terminarem e eu voltar para Brasília. Não definitivamente, mas por um mês, um mês muito necessário e que, em alguns momentos, pareceu uma eternidade. É visível para qualquer um que eu não estava nos meus melhores momentos. No entanto, é muito curioso, porque eu estava procurando algo agradável para falar à época. Eu tinha a pretensão — e ainda a tenho — de escrever semanalmente. Mas o tempo foi passando e mais coisas foram aparecendo no meu caminho. Um mar de preocupações, responsabilidades, trabalhos e, sinceramente, muito tempo livre também. Não nego que tive tempo, muito tempo. Finais de semana que ficava em casa, sem fazer nada em particular. Tardes e dias inteiros que eu deitava na minha cama pensando nos trabalhos pendentes, em como seria bom colocar a minha cabeça pra funcionar e agilizar todas essas pendências, mas eu só ficava lá, deitado. O dia se arrastava incrivelmente devagar, até chegar a segunda e eu ir pra aula, um momento de paz entre a tempestade silenciosa que caía sobre a minha vida.


Até falando agora parece que foi um período mais do que insuportável. Parece que foi um período depressivo e atormentador. Mas não me impressiona que eu estivesse escrevendo assim, como se dez espíritos obsessores estivessem se encostando em mim ao mesmo tempo. Mesmo assim, eu buscava algo bom para escrever sobre. E, embora não encontrasse, eu mantinha o otimismo da procura. Sabia que, no fundo, mesmo com todo o processo agourento de passar horas e horas escrevendo frases tristes e preocupantes, ou olhando para uma tela em branco, esse sentimento de que sim, havia algo bom, persistia.


Passado um mês, que, como eu disse, foi de uma necessidade essencial, eu estou ótimo. Sinceramente, talvez nunca melhor. Claro, ainda existem faltas, ainda existe um certo desejo de voltar para os dias monótonos em Brasília. Ainda existe a ansiedade de dias futuros, da facildade que se esgota, da tranquilidade que alcança um fim, ou, pelo menos, essa é a sensação. Mas eu não posso ignorar que estou vivendo uma vida que tanto sonhei. A independência, a tranquilidade dos dias vazios, a liberdade, o carinho. Curioso mesmo é um comentário que uma amiga minha fez, logo na volta das aulas. Ela olhou pra mim e disse que, mesmo com tantas coisas boas acontecendo, eu estava com uma cara tão triste. Eu não me importo com o comentário, até porque conheço a minha própria verdade e não controlo as aparências que assumo, mas é realmente interessante.


Talvez seja a luz da esperança, que nos guia como uma lanterna à frente de uma lagoa escura, parada, mas sombria. Não posso dizer que tenho esperança hoje, até porque não há motivo para eu ter esperança. Não espero nada de bom, nenhum sorteio, nenhuma dificuldade grande para ultrapassar, nenhum tormento psicológico a ser desanuviado. A luz da esperança talvez seja justamente o que eu procurava, escrevendo sem parar sobre os meus martírios em busca de algo bom. Faz sentido. A esperança não é em si um estado, mas uma direção. Ela não é concretamente algo bom, mas com certeza emite um certo calor. A esperança é um dos sentimentos mais áereos. É a espera por nada em específico, mas por algo bom. De todos os sentimentos — da felicidade à tristeza — a esperança é o mais irreal, insubstancial, até mesmo inexistente. 


    Então, faz sentido ela ter me achado triste. Realmente, não existe mais o brilho da esperança que antes iluminava o meu rosto. E também não há porque ele existir. E eu não estou infeliz, realmente pode não haver animação no meu tom de voz ou posso não demonstrar tanto quanto antes, mas esses são os traços de uma felicidade sincera, genuína. É importante não confundir a alegria com o êxtase, ou a animação com a ansiedade. Não sei bem como fico com a partida desse sentimento tão singelo. É realmente uma luz que vai embora acompanhada de uma luz maior, que se torna irrelevante com a lanterna bem mais forte que é o Sol. Acho que a esperança, como diz o ditado, não morre. E muito menos se torna mais fraca. Ela continua lá, sempre presente, embora ofuscada pela felicidade, pela paixão, pelo Amor.


    A esperança é como o passado, por vezes pode ser até mesmo o próprio passado. Memórias guardadas no fundo do peito, iluminando o caminho escuro, aquecendo o corpo frio, emitindo uma força que não se vai, mesmo que tênue e fraca. E, enquanto somos tomados pela felicidade do presente, enquanto observamos o horizonte colorido de nossas vidas, não percebemos as memórias que ainda se agitam dentro de nós. Mas, da próxima vez que a noite tornar a aparecer, no próximo momento de tristeza, luto ou melancolia, ela estará lá. E aí iremos prestar atenção, muita atenção. Até porque, muitas vezes, ela é apenas o que restou.

Comentários

  1. Na próxima vez que a noite, a tristeza, o luto, a melancolia aparecerem, resta a esperança, o amor, a família, os amigos. Não hesite em procurar o amor e o aconchego. Estamos aqui.

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