SIlêncio de um Cipreste
as pequenas coisas do silêncio, as grandes questões do barulho
Não é muito fácil ser desconectado ou contemplativo quando se faz uma faculdade de jornalismo. Antes, na minha vida, podia simplesmente responder que não era o meu dever me manter informado. Agora, felizmente ou infelizmente, é o meu trabalho. E é com grande pesar que, às vezes, abro o UOL ou O Globo no ônibus para ver o que anda acontecendo no mundo e fingir interesse.
Não é que eu queira me manter sempre desatualizado, mas eu não quero ser conectado. Pensar que eu tenho de saber de tudo por uma obrigação profissional é uma ideia horripilante. Sinto que eu deveria manter, durante a minha vida, o mínimo de dignidade para estar à margem das notícias que espelham o iminente colapso ambiental, o desastroso cenário da política brasileira, a decadência dos modernos impérios internacionais e a degradação cada vez mais vil da moral. Em um mundo ideal, eu estou fechado no meu próprio mundinho com preocupações atingindo apenas a mais superficial esfera da minha própria vaidade. Por mais elitista e excludente que isso seja.
Acredito que esse é um dos debates mais profundos da humanidade: a dualidade entre o ativismo e a alienação, entre o mundo e o eu, entre o barulho e o silêncio. Em Anos Rebeldes (TV Globo, 1992), a oposição entre João Alfredo — militante e guerrilheiro da esquerda durante a Ditadura Militar — e seu par romântico, Maria Lúcia — filha da classe média intelectualizada carioca —trava justamente esse debate. Enquanto João persegue o bem comum e os ideais que defende, Maria Lúcia busca as respostas para os seus próprios problemas, entre eles, a paixão dilacerante que sente por João, seu completo oposto. Tenho a tendência de julgar a defesa do bem-estar próprio como algo mesquinho e egoísta, e tento pensar no bem comum como algo nobre. Mas a realidade é que apenas faço isso para tentar ser uma pessoa melhor, porque, na realidade, estou bem mais próximo da Maria Lúcia do que do João.
E é a realidade, seja como for. No fundo, acredito que realmente existem pessoas e mais pessoas e que não há nenhum problema em ser de um jeito ou de outro. Pensar antes nos próprios problemas não significa que não se possa ter empatia. Ao contrário, pensar em si mesmo é antes pensar no bem-estar das pessoas próximas que te envolvem e te fazem bem. E pensar no mundo é, como eu já disse, um martírio nobre de abnegação das próprias vontades por um fim muito maior do que si ou do que de sujeitos próximos. E, a esse ponto, já entendi e aceitei que eu sou muito mais adepto do meu silêncio interior do que do barulho do mundo.
"Todo mundo tem o direito
de viver cantando
O meu único defeito
é viver pensando"
Quando, às vezes, abro o aplicativo de notícias no meu celular à caminho da faculdade, sei que demônios estou prestes a enfrentar. Em algum momento entre ser informante do povo e o “quarto poder”, o jornalismo também se tornou extremamente infeliz e negativo. Prefiro, mil vezes mais, olhar pela janela do ônibus até chegar no meu ponto. Não pela paisagem mas pela introspecção. Da maneira mais cafona de dizer, quando olho pela janela de um veículo em movimento eu não vejo a rua, ou os prédios, ou as pessoas, eu vejo a mim mesmo. Sempre foi algo que gostei de fazer. Olhar os campos sem fim nas minhas viagens de carro à Pirenópolis, ou entre o batido trajeto Natal-Acari. Encarar os descampados de Brasília, com suas grandes planícies e vegetação seca. É quase um imã que sinto quando o carro entra em movimento, é instintivo, viro para olhar a paisagem comum que passa como um borrão na minha frente.
E ali fico, às vezes por horas, não exatamente observando algo em específico. Pela velocidade do carro e a neutralidade da paisagem, geralmente não há muito o que olhar nem por muito tempo, é, na verdade, um quadro completamente abstrato e desinteressante. Mas eu estou ali, como disse, observando muito mais eu mesmo. Meus pensamentos, minhas ideias, a minha vida inteira passa pela minha mente sempre ligada. Se eu fechasse meus olhos, seria capaz que eu acabasse dormindo, ou, se a paisagem repentinamente mudasse para uma cidade cheia de luzes e cenários interessantes, seria capaz que eu esquecesse os meus próprios pensamentos. Então eu permaneço ali, naquele fio tênue entre o tédio completo e a distração.
Foi muito bom ter adquirido esse hábito desde criança, porque sinto que se não fosse isso, eu nunca entenderia o sentimento de estar em silêncio com si mesmo. Vivemos em uma era em que absolutamente tudo é barulho: os celulares, as redes sociais, os apelos ao trabalho, as pessoas com pressa na rua. E o mundo, cada vez mais conectado, repercute tudo isso como uma grande caverna acústica. Os ecos de guerras do outro lado do mundo, de deportações em massa, da violência e da discriminação, atingem todos nessa nova sociedade contemporânea. Parece que eu, pelo menos, consigo por um momento me desligar de tudo isso e viver os meus próprios problemas e pensamentos mesquinhos.
Realmente não me incomodo de ser assim. Também acho que realmente há maior nobreza naquele que se preocupa com todos os barulhos que chegam pelo seu ouvido virtual, e fazem algo a respeito. E ainda acredito que ambos comportamentos são opostos. Mesmo assim, não acredito que um esteja inteiramente certo ou que outro esteja completamente errado. Nunca vou conseguir entender a mente da pessoa que se sacrifica pelo resto do mundo, por pessoas que não conhece e não mantém nenhum vínculo de afinidade. Afinal, não acredito que isso seja a aplicação da justiça, mas a aplicação da coragem. Continuo me mantendo bem e feliz comigo mesmo, por mais bestas e egocêntricas que sejam minhas preocupações.
Na minha vida profissional, qualquer que seja o rumo que eu tome, acredito que nunca mais vou conseguir escapar do ruído leve do mundo que me persegue. Mas, na minha vida pessoal, nos meus momentos de descanso e de amor, continuarei mantendo o mais frágil silêncio entre mim e as coisas ao redor. Continuarei andando de carro e olhando para as paisagens disformes enquanto entro, cada vez mais fundo, na minha própria cabeça. Continuarei, alguns dias, com a minha cabeça encostada no vidro do ônibus, sem celular, sem livros, sem música, sem barulho. O silêncio é uma das coisas que mais aprendi a valorizar, e vou o preservar enquanto ele durar. Apenas eu, ele, e as minhas mesquinharias.
"O pensamento é uma folha desprendidado galho de nossas vidasque o vento leva e conduzÉ uma luz vacilante e cegaÉ o silêncio do cipresteescoltado pela cruz"
Seja fiel a si mesmo. Tranquilizo-me em saber que vc não está se deixando levar pelo barulho apressado do mundo ao redor.
ResponderExcluirO vento, por também circular por entre nossas cordilheiras, leva e traz nossos divagares, e no momento o silêncio do cipreste acalentou os meus olhos.
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