Não sei dançar
as sombras com que danço
É tarde, o céu já está escuro. Eu caminho sozinho pelas calçadas disformes da minha cidade. A luz é fraca e a calçada está vazia, à exceção de mim. Não me sinto inseguro, na verdade, não sinto a presença de ninguém que poderia destruir aquela caminhada até a minha casa. Estou completamente sozinho, solitário. Mas as janelas dos prédios baixos por que passo não. Elas estão iluminadas, vivas e preenchidas com famílias se preparando para o fim da noite. Vejo prateleiras, quadros, televisões ligadas, e sombras, sombras se movendo através de cortinas, como uma pequena tela em cada janela. Sombras que me causam um misto de inveja, desolação e vontade.
Mais tarde, já no meu quarto, olho pela janela. Menos luzes, menos atividades, agora as pessoas se recolhem para uma das atividades mais solitárias que existem: dormir. Mas uma cena me atrai o olhar. Através de um enquadramento de metal e uma interface de vidro, vejo duas sombras se movendo vagarosamente, juntas, como se juntando uma a outra. Elas estão dançando, em um ritmo lento do que imagino ser uma música romântica. Ou o contrário, um ritmo romântico do que imagino ser uma música lenta.
Mesmo que eu tenha me afastado rapidamente dessa visão, ela ainda permaneceu no meu imaginário, por muito tempo. Não me lembro exatamente quando foi isso, mas estimo que tenha sido pelo menos há três anos, perto de quando me mudei para o meu antigo apartamento. Nunca foi algo que eu pensei muito, mas, de certa forma, é anedótico o quanto ele se encaixou em diferentes fases da minha vida.
Não me considero, e jamais me considerei, uma pessoa solitária. Sempre tive bons amigos e uma família que me ama, e, nese sentido, nunca me faltou suporte ou companhia. Mas tiveram sim momentos, que até hoje existem, que eu quero me isolar do mundo. Como um bom introvertido, preciso recarregar as minhas energias, e nada melhor do que permanecer um com os meus pensamentos.
Para mim, é uma realidade tão básica que não associo a solidão à tristeza. Não consigo me lembrar uma vez que estive triste e achei conforto em um ombro amigo. A solidão se manifesta em mim de duas formas, sendo uma feliz e a outra nem tanto. Preciso dela para sobreviver e me recuperar, mas, frequentemente, ela se apodera da minha vontade como uma frustração.
Em algum momento de 2023 eu estava no meu quarto, em outro desses momentos solitários que se apoderam de mim. Mas, dessa ve, era uma solidão boa. Eu tava escutando músicas, deitado no chão gelado de cerâmica, pensando e sonhando. Alguma música do Caetano tocava, provavelmente Sozinho, música que se tornou um mote para mim naquele ano. Eventualmente escrevi algum poema romântico no meu caderno, e começou ali.
"Às vezes no silêncio da noiteEu fico imaginando nós dois"
A frustração foi chegando com um misto de trsiteza e tranquilidade. Era algo muito bonito, poder me apaixonar, ao mesmo tempo que era algo muito tolo e aparentemente impossível. Eu podia estar ali com outra pessoa, uma pessoa que realmente gostava de mim e que eu gostava, mas não. É claro que aquilo era, realmente, praticamente impossível. Era um campo desconhecido para mim, uma selva não-mapeada, cheia de perigos e armadilhos da natureza.
Mas aquilo ainda não me impedia de sonhar, foi ali que a velha lembrança voltou a me assombrar. Duas sombras, dançando contra a janela de um apartamento mal-iluminado, ouvindo alguma música boba, romântica. Tão distante quanto imaginário, nenhuma configuração específica ou pessoa, mas alguém pra me fazer companhia na noite de uma sexta-feira qualquer. Uma sombra que dançasse comigo.
Dias e anos se passaram em que as sombras mudaram de formas, se definiram e se indefiniram novamente. Que se tornaram quase concretas para apenas voltarem à meia-luz contra a janela. E com os vestibulares, as responsabilidades, as ânsiass de outros resultados e outros futuros, fui esquecendo novamente tudo aquilo.
Apenas esse ano, quando passei no vestibular e comecei a pensar no meu futuro, as sombras voltaram. Sombras paulistas, talvez, sombras estrangeiras em terras desconhecidas. Janelas e prédios diferentes. Dessa vez, meu mote era Maria Bethânia. E eu ficava ali, escutando As Canções Que Você Fez Pra Mim, virando e revirando o vinil de “Mel” e “Álibi” na vitrola do meu pai: Cheiro de Amor, Ronda, O Meu Amor, de novo e de novo. Levantava e dançava as músicas lentas, sem ninguém para me acompanhar, torcendo para que eu não passasse o mico de alguém entrar de repente em casa e ver essa cena tão desoaldora. Mas eu me divertia, brincava com as possibilidades de um futuro novo, de um recomeço.
"É tão difícil olhar o mundo e ver o que ainda existePois sem você, meu mundo é diferenteMinha alegria é triste"
Meses depois, eu estava a caminho da faculdade, à noite. Stop Crying Your Heart Out tocava no meu fone, enquanto eu pensava em quem eu ia encontrar naquele fim de dia, em todas as possibilidades e todas as chances que eu poderia desperdiçar em um único ato. Pensava em todas as pessoas que eu poderia ter dançado com, em todas as formas que se formaram e se dissiparam ao longo da minha vida, da falta que eu sentia delas, e como eu podia perder isso mais uma vez.
Eu não sei dançar, devagar ou rápido. E, na minha vida, sempre tive vergonha de me colocar na pista de dança. Lembro de quando as minhas amigas ficaram surpreendidas com a minha falta de mobilidade, e de todo o esforço que tiveram pra tentar me arrumar de alguma forma. Mas isso não me impede de tentar.
A passos trôpegos e um pouco de rigidez no quadril, dancei um forró com a minha mãe na última vez que estive com eles. O que me levou a isso? Provavelmente a felicidade e o entusiasmo de estar realizando um sonho e afastando um pesadelo. Porque você estava lá, verdadeiramente, corporalmente, e não mais uma sombra.
"Cause all of the starsAre fading away
Just try not to worry
You'll see them someday"
Eu te esperei, bêbado de sono, na cama. A luz fraca da luminária não ajudava muito o fato de que eu estava sem óculos, e você era um borrão pra mim, se arrumando em frente ao espelho da pia. Ela e Eu tocava baixinho enquanto eu te esperava, eu lembro disso, e naquele momento eu não podia acreditar. Já te tinha há algum tempo, mas a realização caiu em mim lentamente.
Enquanto você se virava e vinha na minha direção, seus contornos se tornavam mais definidos contra a luz da luminária. E aos poucos a sua sombra se dissipava para revelar a pessoa com quem eu me apaixonei. Cores, sorrisos, forma, olhos, cabelo, uma sombra nuna foi tão real e concreta, nunca foi tão sólida e imóvel, quanto você. Quando eu desliguei a luz naquela noite, sabia que não seria eu olhando para as janelas de uma cidade adormecida. Sabia que, em meio ao calor do seu abraço, eu não estaria sozinho.
"Outro homem poderá banhar-seNa luz que com essa mulher cresceuMuito momento que nasceMuito tempo que morreuMas nada é igual a ela e eu"
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